domingo, 26 de março de 2017

Salve a sexta-feira!


     A rotina e o capitalismo são as maiores máquinas do tempo jamais inventadas. Com uma ressalva: a viagem é apenas para frente. Para trás, resta o refúgio da nostalgia via memória ou de itens materiais como fotografias e vídeos que, na era digital, se perdem a cada HD pifado.
     Hoje mesmo vi no supermercado panetone com decoração natalina. Nada contra panetones de padaria que são feitos ao longo do ano mas a caracterização de flocos de neve, renas e anjos tocando trombetas me parece prematuro visto que estamos num nove de outubro. Não passou dia das crianças, Halloween, Black Friday e o saco do velhinho já nos esfrega à cara.
     Ano passado vi alguém comentar “ainda nem é dezembro, parem de apressar o natal”. Neste ano eu digo “ainda nem é novembro, parem de apressar o natal”. Daqui alguns anos alguém dirá “ainda estamos em 26 de dezembro, parem de apressar o natal do ano que vem”.
     Isso tudo nada mais é do que o reflexo pós-modernista causado na relativização do tempo. “Não diga que eu não avisei” em algum lugar Einstein nos mostra a língua. Após reforma do calendário Juliano seguida de séculos de calendário Gregoriano, tem-se na atualidade um novo modo de contar os dias da semana.
     Assim, a “segunda-feira” não se chama mais “segunda-feira”. Ela agora se denomina “é segunda-feira DE NOVO”, com ênfase na caixa alta. A “terça-feira” foi renomeada para “ainda é terça-feira...”, assim, reticente. O meio da semana útil ficou como “ó, já é quarta-feira”. “Quinta-feira” então, coitada, sofreu a maior das crises existenciais: perdeu o quinto do nome para “é quase sexta-feira”. A titulação do suposto ápice da semana não tem um consenso visto que cada um coloca entonações diferentes de acordo com o estado de espírito que quer causar nos outros que não necessariamente é aquele sentido de verdade por essa pessoa.
     Tudo bem viajar no tempo. Eu só queria alguma âncora, um tempo pra respirar, apreciar a paisagem. Aproveitar o pior das segundas-feiras antes de endeusar as sextas. Remar contra a modernidade. Desligar o celular. Mas não sem antes checar essa notificação que acaba de aparecer.

-G-
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Um bombeiro salvou um cachorrinho na enchente




O jovem repórter estagiário ia para a quarta pauta do dia. O cenário era o mínimo para ser caótico: chuva, temporal, ventania. Água, muita água. Ficou assegurado, contudo, que não correria risco. Outro repórter mais experiente cobriria a parte humana da desgraça enquanto ele ficaria com o material/urbano. Como sempre, ia acompanhado de um fotógrafo.

Um córrego que cruzava o centro da cidade alagou. O carro da reportagem não pôde se aproximar mais, o nível da água já cobria metade do pneu. Observou certo aglomerado de populares em torno de algo que não conseguiu distinguir de dentro do veículo. Não teve outra alternativa senão encharcar o tênis e possivelmente o bloco de notas que levava em mãos.

Ao chegar no ponto observou um bombeiro nadando ali mesmo no chão que encontrava-se alagado, sem distinção entre onde começava a rua de onde terminava o córrego. Arfando, trazia um cachorro em mãos, vira-lata de pequeno porte, tamanho marrom, orelhas pontudas e olhar profundamente assustado. “Ai, salvou o Tucurunda!” exclamou a senhora dona do animal que erguia os braços para consolar o bicho enquanto agradecia o salvador.

Quem quando como onde quando por que. Todo mundo gosta de animais. Lembrou do critério inesperado. Dá uma notícia, uma nota, uma suíte, uma foto-legenda que fosse. Conversou com o bombeiro, com a dona de Tucurunda. Partes das anotações borraram-se na tinta da caneta sob a chuva.
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Mariposa Branca




     Com asas de 30 centímetros entre o topo de cada uma das pontas ao alto delas, uma mariposa muito branca procura repouso numa pedra que se encontra numa ilha tropical. O inseto, tão claro, parece uma folha de papel, supostamente levada pelo vento, caso alguém a visse à distância. Não, ela existe, com vida própria. Está lá.

     O seu cotidiano é uma sequência de frustrações. A natureza não perdoa. A seleção natural não dá uma trégua. Quando busca refúgio, o que ela tem à disposição? Pedras, árvores, folhagem, troncos, chão, terra. Nada que fosse assim tão alvo como ela. Flores brancas também não servem, são pequenas pro tamanho que tem.

     Pensou se seria ela mesma uma aberração da natureza. É normal ser assim? Ou ainda, seria apenas um ponto fora da curva, que a ciência e os entomologistas ainda não alcançaram? Ainda se fosse uma borboleta, que pousa com as asas fechadas, imaginou que poderia ser uma vida mais fácil.

     A mariposa se irrita, é constantemente atacada por predadores. Procura fugir, não tem pra onde. Dia após dia, a mariposa tem uma única sensação: meu lugar não é aqui. Onde seria? Pensou num lugar frio, em que tudo é branco que nem ela. Concluiu que era ainda um inseto, não teria igualmente condição mínima de sobrevivência. A mariposa não consegue encontrar uma resposta.

     Assim, frustrada, irritada, incomodada, ela segue o cotidiano. O que ela fez para merecer isso? Por que todos insistem em olhar e apontar para ela quando a única coisa que faz é apenas... estar ali? Não é uma condição, ela não é albina. Nem conhece outros pares que poderiam lançar uma luz ao problema. Ela está sozinha, e o sentimento de solidão a incomoda. Não, não resta nada mesmo.

     Por pura teimosia, a mariposa branca não se rende. Forte? Ela só faz o que é necessário. Às vezes foge, quando precisa. Se é cansativo fugir por conta de predadores, por outro é fácil, já que não se vê pertencendo a lugar nenhum mesmo. Ela provavelmente não está bem adaptada ao meio, deve ser devorada por ele. E quem está?

     No breve período de vida que tem à disposição, a mariposa branca, com suas grandes asas, segue burlando o sistema. Algumas crenças dizem que a chegada de uma mariposa branca é sinal de boa sorte, ao contrário das mariposas comuns. Não se especifica, porém, quem afinal é o alvo dessa sorte.



-G-
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-G-
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